quarta-feira, 11 de setembro de 2024

A PRAÇA DOS MORTOS

 


A Praça dos Mortos

A Praça Santos Andrade, por muito tempo, foi um ponto de encontro, de rapazes e moçoilas estudantes, homoafetivos ou não, para mim um pouco de nostalgia da adolescência de uma cena todada ali de um pornô chamado A rainha dos gemidos, aquela adolescência de entrar menor no cinemas as quartas-feira... Voltando a ela, a Praça, um símbolo de vida pulsante em meio ao concreto da cidade. Seus canteiros floridos, outrora espaço de descanso e contemplação, já foi a Vila de Natal Electrolux do Papai Noel Azul (eu), e hoje tais espaços estão tomados pela desesperança. O que antes eram bancos de repouso, se transformaram em leitos improvisados, e também sob as árvores no seu gramado, tornam-se  testemunhas mudas da degradação humana. A praça, agora, é dos mortos. Não de corpos sepultados, mas de almas invisíveis, despojadas de qualquer sinal de vida ou esperança, de espíritos abandonados de si mesmos.

Hoje, ao passar por ali, meus olhos não conseguiram ignorar o que se revelava diante de mim: homens e mulheres espalhados pelo chão, envoltos em cobertores rotos e plásticos, mergulhados num sono que parecia transcender o cansaço físico exalando o cheiro típico que impregna as narinas. Dormiam ao meio-dia, como se o próprio tempo já não tivesse sentido. Para mim, por um breve e doloroso instante, eles não eram mais corpos adormecidos, mas cadáveres – testemunhas vivas de uma sociedade que os abandonou, condenados a vagar entre o presente e o esquecimento ou foram eles que abandonam a vida na sociedade para criar a sua própria sem rotina, obrigações sociopoliticoculturais e preocupações.

Aqueles homens e mulheres, sem endereço, sem nome, sem um lugar para serem ouvidos, a não ser os gritos mudos, os gemidos soturnos ou o choro sob os tecidos oleosos de sua própria transpiração. É! Estavam ali, não pertencendo a lugar algum e, ao mesmo tempo, ocupando todos os espaços. Eles fazem parte de uma paisagem que a cidade se recusa a reconhecer, uma ferida exposta que parece estar sempre à margem da visão coletiva, um reflexo da miséria que não escolhe rosto, idade ou gênero. São vítimas de um sistema que lhes prometeu dignidade, mas entregou abandono ou eles não creem mais nesta dignidade hipócrita de palavras bonitas e ações dúbias, disforme, transfiguradas.

Essa praça, que além de Santos Andrade tem a lembrança da saudosa Lala Schneider, que é praticamente o Hall do Teatro Guaira. Praça que em outros tempos poderia ser vista como um espaço de convívio e lazer, transformou-se em uma morada improvisada de sobreviventes urbanos ou como alguns citam como Zumbis das marquises. Sobreviventes de um mundo que os esqueceu, de políticas que não lhes deram voz, de promessas de inclusão que nunca se concretizaram. E sobre viventes que são ao escolherem a margem de tudo que não os representa, de tudo que lhes cabe em sacolas plásticas ou no carrinho surrupiado do supermercado local.
Para eles, o sol não é sinônimo de vida, mas um relógio implacável que mede as horas entre a fome e o frio da noite, entre os trocados, a marmitas ganha, o corote que queima a garganta e as drogas, a estas fazem tudo, tudo mesmo. A praça é o seu túmulo em vida, onde enterram diariamente o que lhes resta de humanidade.

A vida nesses canteiros seca junto com as flores. As árvores testemunham em silêncio, enquanto a cidade passa apressada, fingindo não ver, eles ora e outra afrontam os passantes com ranger de dentes e palavrões. Essa apatia coletiva ecoa o verdadeiro abandono social: a falta de moradia, a fome, o vício, a ausência de oportunidades.
O abandono  político: onde são a plantinha do vaso que quanto mais seca e sem vida mais ganhos vai ter na sua árvore de parquinho onde nenhuma ação acontece apenas palavras, palavras bonitas, mentiras bonitas...
O espaço que deveria ser de todos é, na verdade, um reflexo da exclusão, da invisibilidade forçada daqueles que não têm mais como clamar por seus direitos porque se auto excluiram dos direitos com medo dos deveres.

E o mais doloroso de tudo isso é perceber que a miséria, aqui, não é apenas material. Ela é também uma miséria do espírito, uma desolação da alma. A miséria humana transcende o corpo que adoece e morre, ela corrói a esperança, destrói a identidade e apaga a existência. Esses homens e mulheres, ao se deitarem em plena luz do dia, de alguma forma, estão sendo sepultados pelos olhares indiferentes de quem passa. Suas vidas, já roubadas pelo abandono, são enterradas pela falta de empatia.

A Praça dos Mortos não é apenas um cenário, é um símbolo de um fracasso muito maior: o nosso fracasso enquanto sociedade, enquanto vivência comum. Fracassamos em olhar para esses homens e mulheres como seres humanos. Fracassamos em criar políticas públicas verdadeiras que lhes dessem oportunidades reais de recomeçar. Fracassamos em construir uma rede de proteção social que os impedisse de cair no abismo da indigência.
Do nosso medo, nojo e indiferença.

No entanto, apesar de toda essa escuridão, há um eco de resistência. Cada uma dessas almas, mesmo na inércia de seus corpos, carrega uma história de luta de viver, para viver. Estão mortos para a cidade, mas vivos em seus conflitos internos, remoendo suas históriase seus medos. Vivem à margem, mas respiram. E isso, por mais trágico que pareça, é um ato de revolta. Um grito silencioso que denuncia o colapso de um mundo que privilegia o lucro em detrimento da vida... Em contrapartida o desejo incontrolável de que o estado lhe sustente em tudo, sem perceber que o estado nada produz a não ser taxas e dívidas imensuráveis.

A Praça dos Mortos não deveria existir. Mas enquanto ela continuar ali, enquanto aqueles corpos seguirem dormindo ao meio-dia, estaremos falhando como seres humanos. Esses mortos-vivos são nosso espelho mais cruel, revelando o quanto nos distanciamos da compaixão, da solidariedade, da empatia pelo nosso próximo sem nem mesmo perceber que no amanhã um destes mortos desanimado com a dor, raiva, percalços possa ser eu...

Sou Abilio Machado🎅, espero que goste deste texto, escrito aqui na sala de espera do ambulatório do hospital.

Paz profunda ✌ 🙏 🙌 🎅



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