quinta-feira, 22 de maio de 2025

O Assombro Silencioso das Coisas Comuns

 


"O Assombro Silencioso das Coisas Comuns"
Crônica por Abilio Machado, n amargo sermão sobre as coisas que não nos apetece, que nos forçam a engolir sem água ou orações de pão. 

Acordar é o primeiro erro. Já começa errado o dia quando os olhos se abrem e o teto parece zombar de sua insignificância. O despertador — essa aberração capitalista de precisão suíça — não desperta ninguém: ele arromba o sono, escarra no inconsciente e ordena que você entre na fila dos vivos, mesmo sendo apenas um cadáver funcional.

O quarto é um mausoléu perfumado, cheio de bugigangas que compramos pra sentir que temos algum controle sobre o caos. O espelho? Um sádico. Ele reflete não o rosto, mas a mentira que você sustenta há anos: “Eu sou alguém”, sem falar do escárnio de rir de você com seu corpo deformado com o avançar dos anos, ali barrigudo e pinto pequeno. A toalha que escorrega do cabide parece rir de você sobre tudo isso e sobre o todo. O café derramado vinga-se por todos os grãos moídos à força. Tudo ao seu redor é uma conspiração doméstica, um motim sutil contra a sanidade.

A cidade lá fora? Um teatro de absurdos em cartaz perpétuo. Os ônibus arrastam os corpos como se fossem caixões motorizados. A calçada fede a pressa e desespero. As pessoas caminham como se fugissem de algo — e de fato estão — só não sabem o quê. Talvez de si mesmas, talvez do espelho que esqueceram de encarar ou de cobrir em respeito ao morto que é você mesmo aos poucos na calada da noite sem nenhum vintém.

A política, esse circo de horrores, conseguiu o impossível: tornar o riso uma arma de autopreservação. Rir é a última forma de protesto que ainda não taxaram,  que Haddad não saiba. Os ideais morreram num aplicativo de entrega rápida. Agora, a virtude cabe em 280 caracteres e a empatia é medida por curtidas. O mode in é "ser do bem"  O filósofo virou influencer, o revolucionário virou coach. “Desperte seu potencial”, dizem, enquanto sugam a energia vital com sorrisos de serpente e apunhalam a família por um pedaço de terra dos ancestrais, eles se foram mas ficaram os ais.

Até a natureza, coitada, entrou no jogo. Os pássaros cantam, não por alegria, mas por desespero. “Ainda estamos aqui”, eles gritam, e ninguém escuta. Porque temos fones de ouvido — o símbolo máximo do niilismo moderno. Se o mundo vai ruir, que ao menos seja com nossa playlist preferida tocando.

O desconforto, esse velho amigo, não está nas tragédias grandiosas, mas nos detalhes. No zumbido do ventilador que não deixa dormir. Na notificação que não é pra você. No toque humano que passou a ser incômodo. O incômodo é ontológico: somos forasteiros em nossas próprias vidas, inquilinos de carne em corpos que não reconhecemos mais, eu a muito não me vejo bem, com muita saudade do que um dia fui e puta que pariu, pnde parei eu,  não sou mais aquele que sumiu.

E aí vem a pergunta maldita: “Está tudo bem?”
Claro que não. Nunca esteve. E o mais grave: não deveria estar. Porque o bem-estar é um anestésico, um placebo emocional que nos impede de enxergar a rachadura estrutural da existência. Ser feliz hoje em dia é um ato de irresponsabilidade civil. Se você está bem, você está mal informado,  ou está morando em outro país.

E assim seguimos, equilibrando-nos na corda bamba entre o ridículo e o abismo. Criando memes sobre a atual gestão do Brasil para não engasgar nas próprias lágrimas em frente a gôndola do supermercado ou na fila do caixa da farmácia. Rindo porque é melhor que chorar. Cansados de fingir que a normalidade é saudável. Querendo, no fundo, que tudo exploda — mas com estilo, com sarcasmo, com cinismo bem temperado  a orégano e manjericão... olhos surtimortos, corpo pendente para o lado, falando sozinho pelas ruas, falando ou se confessando, seria com Deus ?!

Afinal, se o mundo vai acabar, que seja com uma gargalhada amarga.
Porque, no fim, tudo que nos cerca foi desenhado pra nos destruir com gentileza.

Amargo sermão!

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